quinta-feira, 3 de setembro de 2009
Tempo de mudança
Ó tio... ria!

"A pintura esforçava-se, no fundo, em vão, por nos iludir, e esta ilusão bastava à arte, enquanto a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão de realismo. Por mais hábil que fosse o pintor, a sua obra era sempre hipotecada por uma inevitável subjectividade. Diante da imagem uma dúvida persistia, por causa da presença do homem. Assim, o fenómeno essencial na passagem da pintura barroca à fotografia não reside no mero aperfeiçoamento material mas num facto psicológico: a satisfação completa da nossa ânsia de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído."
A grande contradição da pintura, ou o seu grande defeito ou limitação, era, para Bazin, a sua falta de objectividade.
Os passos iniciais do cinema e de seus primeiros grandes autores parecem ter seguido, de certa forma, o caminho das artes plásticas. O valor dos primeiros filmes restringia-se, mais uma vez, ao sucesso da concretização de uma ilusão. Deixando de lado as suas possibilidades como mecanismo automático de apreensão do real, o cinema herdaria, com isso, as contradições da pintura e continuaria a insistir na ideia da intervenção humana como operadora da ilusão e como criadora de significado e de discurso a partir da imagem. Tanto Eisenstein quanto Griffith, entre outros, teriam entendido a montagem como o grande elemento criador do cinema, recurso através do qual o realizador produz o sentido que deseja dar à imagem, discursa livremente e cria sua visão de mundo. Bazin fará a crítica dessa compreensão da montagem. Ele detecta no cinema de 1920 a 1940 a existência de realizadores que acreditam na imagem e realizadores que acreditam na realidade. Os realizadores que acreditam na imagem são aqueles que, para Bazin, acrescentam, através de recursos plásticos (o cenário, a maquilhagem, a interpretação, a luz, o enquadramento) e de montagem, elementos exteriores ao facto representado. Em outras palavras, acrescentariam imagem à realidade, ou transformariam a realidade em imagem. O "cinema da realidade" representava a decadência de uma certa estética cinematográfica e a reaproximação do cinema com a sua vocação realista, ou seja, com aquilo que vimos ser a mais importante potencialidade do cinema para Bazin: a apreensão directa do real e a superação das contradições herdadas da história das artes plásticas. O cinema de Godard, que Bazin não pôde conhecer, demanda grande participação ao espectador, e, ao mesmo tempo, profundamente montado, discursivo e ideológico. A ambiguidade não vem do tema ou da imagem, em si, contínua e sem cortes, mas da opção do realizador de produzir um discurso que não determina para si uma unicidade de sentido e deixa para o espectador, em certa medida, a tarefa de fazê-lo. Andy Warhol, com os seus filmes de oito horas sobre o Empire State Building ou simplesmente a mostrar um homem a dormir poderia ser compreendido como um neo-realista radical, que tirou do filme todo o conteúdo dramático e toda a acção para, reduzida a montagem ao mínimo necessário, mostrar a realidade de um evento em toda a sua extensão, em toda a sua duração, obtendo uma estrutura temporal o mais próxima possível da passagem real do tempo. Teria levado, com isso, o cinema à inexistência, ao desaparecimento total de seus elementos (actores, enredo, mise-en-scène), chegando muito perto do que Bazin teria previsto como o filme mais realista possível (nada de actores, nada de história, nada de cinema). Mas Warhol não era um neo-realista e relacionar as suas ideias às de Bazin serve mais, aqui, para ilustrar, a teoria cinematográfica de Bazin. Mas Andy Warhol, que não era mesmo neo-realista, não pretendia com os seus filmes dar lugar à realidade ou encontrar um expressão perfeita para o real em arte. A intenção dele era de modificar a relação filme-espectador. É claro também que quando Bazin fala contra a montagem e contra a intervenção excessiva do cineasta, ele está-se a dirigir directamente a um cinema que o desagradava: o cinema anterior à segunda guerra. É complicado submeter a sua teoria a algo que veio depois dela. Mas, no entanto, essa análise é válida porque mostra que a ideia do específico cinematográfico, qualquer que ele seja, montagem ou realidade, não pôde ser corroborada pelo que ocorreu a seguir com a arte cinematográfica. Além disso, confirma-se que o cinema não é um meio privilegiado de representação da realidade e não é realista por natureza. Mas o que mais importa, a despeito de todas as críticas que se pode fazer à obra de Bazin, é, segundo Labarthe, o caminho do pensamento, a clareza da demonstração, o rigor da análise. Bazin deixou uma obra importante sobre o cinema moderno, bastante reveladora sobre os seus princípios.